29.1.06

Muralhas
Entraste na cidade já a noite tinha duas horas, agastado pela velha sensação de timidez ao ocupares um espaço que não é teu.
Disseram-te, viras uma vez a esquerda e depois duas a direita e entras dentro da muralha. Se soubessem como essa muralha fez sentido em ti!
No amor, como na guerra, as barreiras são mais que muitas, fisicas, como a muralha da cidade, morais, como a timidez de ocupar um espaço desconhecido, a que não pertences, e a que estás a aceder pela primeira vez, a invadir.
E o medo, esse que não te larga, o medo de ir ocupar para mal governar, o medo de deixar entrar apenas para procurar, o medo de pilhar, sem querer, de roubar para distruir, este sim, é a tua grande muralha. Fechaste os olhos da tua atenção, para que deixasses de ver o medo nos teus raciocinios, esse que se cheira a léguas, que ameaça, esse de que os cães não gostam, nem tu, porque te prende. O medo que atiça um cão é o mesmo que te prende. Mas deixando de pensar nele, parte do teu raciocinio continuava a resolve-lo porque sabias que te ataria.
Adiante, entraste na cidade a direita, a última direita que se escondia pr'alem da curva, e se te apresentou num arco, debaixo do qual sentiste a leve sensação de transpor um dos limites. Entraste fisicamente na muralha.
Já na velha cidade, de ruas calcetadas a cubos de granito púlido, as fachadas iam passando por ti. Entre algumas lojas de ar moderno e um bazar chinês, portas sem forma e janelas geometricamente alinhadas entre si e geometricamente dividídas em pequenas molduras de vidro atribuem um certo ar organizado aos sinais antigos da cidade.
Espreitas as ruas finas que se entrecuzam, saem das paredes caiadas cornocópias de ferro furjado que penduram decaedros emitindo uma luz amarela que enaltece a antiguidade das construções.
Pensas, óptimo, esta cidade está inundada de luz turva, essa que não permite ver os defeitos, mas permite ver no vulto o essencial para lhe reconhecer a identidade. Por breves instantes esbate-se o teu medo!
Conduzindo a velocidade moderada, ao lado direito, um largo, e no extremo oposto do largo um edificio institucional, não muito antigo, robusto, parecendo desnivelado, destrais te pensando, numa cidade velha nunca sabemos o que está desnivelado, se as ruas se as casas, e respondes-te imediatamente, claro que é a rua, não imaginas o corredor longitudinal daquela casa a subir ou a descer, dependendo do sentido, e as portas frente a frente de um lado e do outro dele serem mal esquadriadas, podiam ser, mas o bom senso diz que não serão concerteza. Pensamentos mirabolantes, conclusões mais ainda.
De repente notas que o edificio está iluminado por luz branca em focos zenitais, volta-te a tensão do medo, com esta luz ver-me-á a alma, e desmascarar-me-á, será que posso deixar, será que quero?!
Olhas à volta, e excepto aquele edificio, que vieste a saber mais tarde ser o teatro, e mais um ou dois talvez pares deles perdidos no labirinto, eram iluminados por luz branca. Sendo um deles a Sé que avistas no topo da cidade, não te caberia com certeza a triste sorte do teu destino não estar iluminado da luz turva, como qualquer bandido, ladrão, malfeitor ou artista, gosta.
Pit stop para a caixa automática e o respirar do ar da cidade. De pé, e sem os ecrãs através dos quais temos a percepção do cenário enquanto conduzimos, a presença da cidade torna-se mais imponente, tem cheiro, tem mais cor, e o barulho deixa de ser o turbilhão dos teus rodados na calçada e passa a ser silêncio acompanhado por murmúrios ao fundo de uma qualquer transversal. O citadino e quase inaúdivel Pi, pi, pi ,pi do código digitado numa caixa multibanco igual ás outras todas no mundo.
Entras, fechas a porta do carro, e de novo atrás do ecrã. De novo o turbilhão. E o medo, o medo de encarar o que te faz estar ali, o medo de ser encarado como invasor, tendo havido um simpático e irrecusável convite. Sentimento estúpido este, incomodo! Segues, antes de lembrares ser necessário telefonar para saber as coordenadas do teu destino, número de porta, nome de rua, se á direita, se á esquerda, naquela biforcação debaixo do arco ( romano...será?!).
Pegas no aparelho, do outro lado, uma voz rouca, pausada mas firme em contrariar alguma insegurança que detectas ao primeiro " sim, tás onde?"...
Assusta te, insegurança!!! o rastilho que detona o medo...merda...calma...queimará controladamente, deixarei que se consuma a si próprio...
Medo!!! Medo do que?! O medo é precedido de uma projecção futura de acontecimentos menos agradáveis, falhas, incomodos, mal entendidos, e acenta sobre essa projecção, alimenta-se dela.
A mesma voz responde te, "- Na bifurcação debaixo dos arcos é a esquerda...", ia mesmo perguntar isso"..., esgueiras o lábio num sinal de satisfação, óptimo, primeiros sinais de cumplicidade, uma sintonia na designação "biforcação debaixo do(s) arco(s)", olhas para trás, primeiro pelo retrovisor, depois directamente, torcendo o pescoço quase como uma coruja, olhos quase pretos, amedrontados, mas atentos, serenos e prespicazes, assustadoramente enigmáticos, como os de qualquer coruja que se preze. Constatas o teu erro, são arcos, pelo menos dois, que vejas, aparentemente não erraste por muito, não era um, eram dois, apenas mais um, mas que transforma tudo num conjunto, uma pequena margem de erro que muda tudo para o plural.
Sorriste dos teus pensamentos, e seguiste à esquerda, continuando a ouvir a voz, ao trambulhão por uma escada de madeira "...então vem andando que eu vou a porta de baixo para que me vejas...", "- Acho bem, é por isso mesmo que estou aqui..." e sorris mais abertamente, e tens a sensação de perceber um sorriso tambem, do outro lado da linha, se é que me faço entender. Sais da primeira curva e ela sai da última porta antes da próxima, ainda trás uma luz na mão, o telefone, e acena com a mão e com a luz.
O humor! O humor é a solução, o humor quebra sempre o gelo, o humor quebra-o e a sinceridade derrete-o, pensas enquanto que, com a tua tipica falta de cuidado e de atenção, sobes o passeio ao tentar estacionar num lugar bem demarcado por traços amarelos, e que digamos assim, qualquer camionista estacionaria lá o seu pesado sem sequer tocar no lancil.
Desligas a chave, procuras qualquer coisa, não sabes bem o quê, e pensas, é isso mesmo, pronunciarei com os meus modos mais naturais o primeiro pensamento que me atravessar o miolo, e continuas a procura. Do quê?! Não sabes, talvez de um último segundo que deixe consumir o resto do medo que sentes. Levantas a cabeça e olhas-a, através do ecrã. Aguarda-te olhando a luz que tem na mão, talvez veja as horas, levanta a cabeça, encosta os joelhos, e aperta cada braço com a mão oposta. Quase que sabes o que estava a pensar.
Sais, bates a porta do carro com força, como sempre, e volteas a olhar para dentro do carro, novamente a procura de não sei o quê, ou novamente a tentar ganhar segundos. Cuidado com o que dizes, ainda te tomam por pateta! Que tomem, e que seja por um pateta alegre, antes um pateta alegre que um cagão armado ao pingarelho.
Atravessas a rua de sentido único sem sequer olhar para trás, dá-te um ar de seguramça saberes confiar apenas no ouvido, pensas...estúpido, não dirás isto, ocorreu te mas não o dirás...
Chegas perto dela, apertas lhe as mãos que lhe apertam os braços e dás-lhe um beijo na face direita, ela retribui o cumprimento e sorri uma mistura de alegria com reticência, mas notas que luta contra a reticência, é o sentimento de invasão, pensa concerteza "Afinal vieste?!" e tambem "Tás no meu espaço, se algo corre mal, tudo corre mal!", tudo se reflete na sua expressão, pensas "Óptimo, temos transparência..."
- Sobe. - diz do terceiro degrau.
- Subirei. Aposto que sei o que estavas a pensar quando olhaste para o telefone e te abraçaste a ti própria.
- Sim, e então?!
- Viste a hora e pensaste " a esta hora faz frio nesta terra"...
- Perdeste a aposta!
- Sim?!...ooops...e então! o que pensavas?!
- Para já, de inverno faz sempre frio nesta cidade, já estou habituada.- disse já no ultimo degrau sem olhar para trás.
Merda, não tá fácil, tá gelada, deve ser do frio, constante... trocadilho interessante.
- Posso tentar outra vez?- perguntas do penúltimo degrau enquanto ela procurava a chave que abriria a porta.
- Sim, claro, mas olha que vou cobrar a primeira derrota.
- Cobrarás, mas não acumularás a divida da minha primeira tentativa se eu desta vez ganhar.
- Não! Porquê? Ficariamos com o saldo a zeros...
- Não, ao contrário de todas as dívidas, sejam elas de outras apostas ou não, esta eu faço questão de pagar e que me pagues - respondes num racioncinio meio confuso - e assim com'assim não gosto de nulidades, antes negativo do que nulo.
- Tenta, o que esperas?- diz já sob a ombreira da porta, voltando com um ar meio cansado.
- Tentarei. Viste o meu nome no telefone e logo pensaste "era tão bom que ele estacionasse rapidamente e me desse um abraço forte e quente, pois está frio e estou meio confusa com toda esta rapidez da nossa aproximação" basicamente, querias tu pensar "era fantástico se ele me salvasse do gelo desta cidade, e do gelo que me ataca o pensamento, este sentimento de estar a ser invadida por um estranho, não tão estranho quanto isso, mas mesmo assim estranho, convidado".
Soltou um sorriso enorme, completamente aberto, e não soltou uma gargalhada, vim a saber mais tarde, que porque diz não saber rir em voz alta.
Deu dois passos à frente e disponibilizou-se ao meu abraço, esse mesmo que ela precisava e que eu soube, logo que abracei, que precisava tambem.
- Então, ganhei desta vez? - perguntei com o tal ar de pateta alegre.
- Ganhaste, não porque tenha sido exactamente isso que pensei, mas porque adoro o teu humor. Quebra o gelo.
- Sim, ha imensas palavras, já para não contar com os infinitos encadeamentos de raciocinios, para definir os mesmos sentimentos. Fico feliz por gostares, sempre ouvi dizer que o humor é a maior das cumplicidades. - dizes com um sorriso vaidoso, ela concluiu apertando-se-lhe o teu abraço:
-Podes ter a certeza, rompe muralhas de medo.

1 Comments:

Blogger Z said...

Já te disse o que acho deste post amigo, mas repito-o porque as verdades podem ser repetidas.
Adorei. Adorei. Adorei. ;)

janeiro 31, 2006  

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